Por: Professor Alexandre Andrade
Nos dias que correm, a inteligência artificial (IA) é objeto de uma atenção sem precedentes em todos os domínios do conhecimento e da técnica. No âmbito da medicina, sucedem-se os artigos que mostram as potencialidades da IA para melhorar a fiabilidade dos processos de diagnóstico. É fácil ceder à tentação de ver na IA uma espécie de solução omnipotente para resolver, ou mitigar, as limitações das técnicas de diagnóstico atuais. Evitar ceder a essa tentação requer pragmatismo, conhecimento profundo das limitações dos métodos de IA e o exercício constante de espírito crítico. O engenheiro biomédico está numa excelente posição para tal.
Vou destacar um exemplo que me é caro: a aplicação de algoritmos de IA, em especial redes neuronais profundas, a imagens e sinais funcionais que traduzem o funcionamento do cérebro humano. A literatura está repleta de estudos que aplicam IA a dados de eletroencefalografia, ressonância magnética funcional e outras modalidades com o fim de diagnosticar, estadiar ou identificar biomarcadores, com aplicação a praticamente todas as doenças do foro neurológico, como por exemplo: doenças de Parkinson e Alzheimer, espetro do autismo, esquizofrenia, entre muitas outras. Estes estudos têm mostrado duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, estas abordagens conduzem a melhorias quantificáveis da precisão do diagnóstico. Em segundo lugar, a aplicação indiscriminada de soluções desenvolvidas para outros contextos leva a resultados sub-ótimos. Não existe uma solução universal aplicável a todos os contextos.
Pensemos agora num caso ainda mais específico. A conectividade funcional é uma abordagem que consiste na quantificação das interações entre diferentes regiões do cérebro: em vez de se avaliar a atividade regional específica, avalia-se a maneira como as atividades de cada região estão correlacionadas. São, deste modo, obtidas as chamadas “matrizes de conectividade”, que podem ser vistas como imagens. Contudo, estas contêm informação muito diferente da das imagens propriamente ditas. Por isso, a aplicação de algoritmos com eficácia comprovada em análise de imagem, como por exemplo as redes neuronais do tipo “Convolutional Neural Networks”, pode ser ineficaz porque estas baseiam-se em pressupostos sobre a natureza das imagens que não se aplicam às matrizes de conectividade. É preciso encontrar soluções alternativas, adaptar o que existe ou até inventar arquiteturas híbridas. E é crítico saber como avaliar essas novas soluções.
O engenheiro biomédico, graças à sua formação, possui uma visão transversal que abrange: o funcionamento e limitações das modalidades de sinal e imagem; os aspetos neuroanatómicos que conferem especificidade a cada patologia; os métodos de processamento de dados que conduzem aos sinais e imagens que serão objeto de análise; conhecimentos sobre a estrutura dos algoritmos de IA; conhecimentos sobre modelação de sistemas fisiológicos que podem ajudar a aperfeiçoar métodos existentes. Está, por estes motivos, em excelentes condições para dar um contributo decisivo nesta área e para enfrentar os desafios que esta coloca. O maior de todos estes desafios talvez seja este: caminhar para um futuro em que, mais do que aumentar a precisão de diagnóstico nalguns pontos percentuais, a IA permita um conhecimento mais profundo dos mecanismos patofisiológicos das doenças neurológicas, abrindo caminho para novas terapias capazes de atenuar o sofrimento de milhões de doentes e dos seus próximos. Sabemos hoje que este desafio é imenso e árduo, mas sabemos também que não é utópico.
Alexandre Andrade, Abril de 2022
Sugestão de leitura:
Du et al (2018) “Classification and Prediction of Brain Disorders Using Functional Connectivity: Promising but Challenging”, Frontiers in Neuroscience, Volume 12 | Article 525. doi: 10.3389/fnins.2018.00525